Para que o
que foi dito, nunca seja esquecido.
Quando era Criança
Ele não se referia a mim pelo
nome. E nunca cheguei a perguntar o porquê, daquele costume, apesar de ter sido
a pessoa que veio a me dar o nome que tenho. Para ele eu era apenas “o menino”,
assim mesmo. “Ô menino... Vem cá”. Coisa que realmente fui naqueles tempos. Um
garoto com menos de 10 anos e com a cabeça nas nuvens. Ele, o avô, o único
familiar a me chamar assim quando criança. Também, logo depois, quando adulto.
Me apresentou as histórias que hoje carrego comigo. E por sua causa conheci o
pai de seu pai, meu tataravô. Parente que apesar de não ter a oportunidade de encontrar
pessoalmente, pois já havia falecido antes de meu nascimento, acabou como se em
alguns momentos, estivesse presente entre nós.
A lembrança, que talvez já
tivesse deixado de lado por alguns anos, foi desperta pela folha de papel A4. Ela
estava guardada numa das inúmeras caixas de fotos, boletins escolares pontilhados
com algumas notas em vermelho, diversos papeis esquecidos e a natural cobertura
de poeira sobre a tampa do papelão. Tudo isso se encontrava dentro de um
guarda-roupa que já não era aberto fazia algum tempo. A folha mostra cinco
gerações desenhadas a lápis de cor na moda dos bonequinhos de palito. Apesar
dos acontecimentos lembrados, pelo desenho, só contarem com dois desses cinco
homens. Os outros três também estavam presentes. Mesmo que um desses três
estivesse apenas nas palavras e lembranças do mais velho, naquela varanda à
noite, e os outros dois restantes unindo o menino, que era eu, ao avô e tataravô.
Naqueles tempos ele ficava sentado
em seu banco, perto do fogão a lenha usado em reuniões de família nas noites
frescas de minha infância, com os familiares em volta. Os adultos e as crianças,
cada grupo em seu mundo de conversas ou preocupações. E o mais velho, vez ou
outra, dividindo a atenção dos dois. Em alguns dias meus primos estavam
presentes, em outros não, mesmo assim era como se existisse apenas nós dois
quando as histórias eram contadas. Eu e o homem de calças de tergal, chinelos e
camisa de abotoar, entreaberta, bigodinho, cabelos com fios prateados e a pele
acobreada e curtida pelos tempos da enxada.
Esse senhor foi um contador
de histórias que dava asas à imaginação dos netos. E apesar de essas histórias
terem tido poucos momentos para serem contadas e se repetido algumas vezes,
sempre com um detalhe a mais ou um ponto um pouco diferente. Ainda são
lembradas por todos. Aquele mundo do mais velho era povoado com almas penadas e
lobisomens. Além de possuir a realidade, ou não, da onça que se intrometeu no
meio do caminho e do abraço fatal do tamanduá. Com tudo isso, até hoje fico me
perguntando se o que ele contava aconteceu de verdade ou eram simplesmente
coisas de sua cabeça. Pois, mesmo nas situações mais inacreditáveis, nos
convencia com a certeza, que não admitia dúvidas, dos mais velhos. Misturando a
realidade com a quase verdade e criando a vontade de escutar. “Mais um
pouquinho, por favor.” Talvez, só por isso, elas tenham o gosto especial da dúvida
e sobrevivam entre primos e primas. Gerando as perguntas que, quando menores,
nós não tínhamos.
No dia em que ele falou sobre o que aconteceu
com seu avô, pela primeira vez, eu era a única criança naquela varanda. Com a
imaginação a mil e o sono querendo chegar, mas ainda esquecido. Hoje tento
imaginar se na época em que ele escutou aquela história, pela primeira vez, também
tenha sido apenas um menino sonolento na luta contra o sono. E se as primeiras e
melhores histórias são sempre contadas quando somos crianças ou se isso é um
privilégio de poucos.
“Menino, seu tataravô Manoel Gonçalves veio de
Portugal quando criança. Lá pelos anos mil oitocentos e poucos, quando as
coisas eram muito diferentes. E até o tempo corria de outra forma. Vieram para
cá apenas ele, seus pais, e os costumes que trouxeram da terra. Sei que o vovô
acreditava em lobisomem, coisa que realmente existe. Eu já vi e contei como
isso aconteceu a você e seus primos. Mesmo assim não tenho medo, sou eu aqui e
ele lá, é só não provocar. Mas seu tataravô morria de medo, talvez existissem mais
desses bichos antigamente e ele precisasse percorrer a cavalo mais estradas
desertas do que existem hoje. O vovô Manoel dizia que só bala de prata bastava
para matar o cão. E mesmo assim me garantiu que nunca conheceu um homem com a coragem
de tentar. Porque é impossível conseguir acertar um tiro em um bicho desses. E
não se teria uma segunda tentativa. De qualquer forma, não tem pontaria que
ajude, o cão se esquiva mesmo de bala.”
Naqueles dias meu tataravô morava
em um povoado afastado do que era a cidade da época. Grandes extensões de mata
e pasto, aqui e ali, eram uma das poucas coisas que se poderia ver a distância
cortada por alguns morros. A horas de viagem eram contadas no meio dia as
costas do cavalo. Onde se caminhava acompanhado a maior parte do tempo pelas
cercas e moirões, mata-burros e porteiras. Percorrendo as estradas de chão
batido, até a cidade mais próxima.
Manoel convivia com a rotina
do retiro de leite e a criação de porcos, galos, patos e afins. Era um
empregado de fazenda. Um empregado com sobrenome. Coisa que poucos tinham. Antes
do começo do registro de nascimento obrigatório, quando a certidão de
nascimento trazia apenas a informação do primeiro nome. E sobrenome era coisa
de família rica e conhecida, coisa de valor. Apesar de no caso de Manoel não
ser um nome de família. Pois seu pai era conhecido como Gonçalves, simplesmente
por ser empregado dos Gonçalves. Então, assim, Manoel recebeu seu segundo nome
que passou para seus filhos e netos. Uma herança de uma nova família.
Quando meu antepassado Manoel
era vivo ainda existia a estrada de ferro que percorriam a região entre o
estado do Rio de Janeiro e o de Minas Gerais. A simplicidade corria solta, os
pensamentos eram outros e os comportamentos estranhamente os mesmo de hoje. Só
que mais acobertados, como diria meu avô. Aqueles eram outros tempos, tempos de
lampião aceso, de dormir e acordar cedo, da luz da lua e das estrelas mais
acentuadas pela inexistência da iluminação de agora. As coisas eram mais claras,
no preto e no branco, e o cheiro do fogão a lenha corria solto pelo ar.
Vejo meu avô sorrindo, talvez satisfeito, por
conseguir prender a minha atenção. E um pouquinho, até saudoso, lembrando de
seu avô Manoel Gonçalves. Sorria e continuava com a história que tinha escutado
de seu avô.
“O Gonçalves não tinha medo
da vida, andava armado com sua espingarda presa ao cavalo, mas como se tratava ‘das
coisas do diabo’, como ele mesmo dizia, era melhor se precaver de outras
formas. E nas noites de lua cheia trancava muito bem as portas e janelas de
casa, só abrindo no dia seguinte.”
Já um pouco crescido e
focando nas palavras de meu avô. Fiquei pensando no que ele dizia sobre Manoel
Gonçalves. Se Manoel afirmava com tanta certeza que não era possível acertar um
tiro no cão. Era porque havia tentado e saído vivo. Talvez a partir desse dia, Manoel
tenha começado a ter medo.
A varanda, iluminada por duas
lâmpadas incandescentes, jogando sua luz amarelada sobre nossas cabeças, era
tudo que existia naquele momento. Um ponto de luz na escuridão do terreiro. E o
menino, que algum dia eu fui. Sentado no chão espantando o sono que cismava em
chegar e querendo ter a vontade do adulto para ficar acordado até mais tarde escutando
o final da história.
Olhava a toda hora para fora
da varanda, com a sensação de acreditar ver algo na escuridão do terreiro,
perto do poço artesiano. Algo como um enorme cão negro de olhos amarelos iguais
a luz das lâmpadas. E incrivelmente aquilo que via não era assustador. O cão estava
sentado tranquilamente no chão de terra batida, olhando fixamente para mim com
uma curiosidade quase humana. Como se quisesse dizer alguma coisa importante e
não pudesse. Ou se estivesse se perguntando se deveria ser dito. Não estava
lá... É claro, não tínhamos cães naquela época, mas eu fantasiava tanto. Era
como se ele pudesse chegar tão perto ao ponto de alcançar meu rosto e o lamber
com sua língua vermelha e escorregadia.
E ao mesmo tempo, que a
criatura criava vida no terreiro, meu avô continuava com sua história e me
chamava de menino. Falando que Manoel costumava contar a todos que conhecia do
dia quando foi perseguido pelo lobisomem. Meu avô não explicou o porquê de o
Manoel não estar dentro de casa nesse dia, mas acredito que ele tivesse tido lá
os seus motivos para ir a cavalo até a uma festa tão longe. Talvez meu tataravô
Manoel não percebesse que aquela noite teria lua cheia. Ou, provavelmente
tivesse um pouco de coragem para pensar que nada iria acontecer. E imagino que
tenha considerado até a possibilidade de ver a mulher que viria a ser minha
trisavó, e que pelo visto ele começava a cortejar naquela época, como algo que
valesse o perigo que correu. Pois pelo que sei, alguns meses depois desses
acontecimentos ele viria a se casar. Tenha tido ou não um motivo para ter feito
o que fez. O fato é que a história aconteceu da forma como foi contada e
motivos muitas vezes não são importantes para as coisas darem errado.
Simplesmente a vida te leva a certos pontos em que os acontecimentos são
inevitáveis.
“Quando percebeu que a festa
estava acabando e já era tarde da noite, passou a mão nas rédeas de seu cavalo
e se pôs a galopar estrada a fora, fez o sinal da cruz na primeira encruzilhada,
e se acalmou, seguindo o caminho de casa.”
“Sei que você não chegou a
conhecer meu avô! Mas já te mostrei uma de suas fotos. Ele se vestia muito bem
e usava aquela barba grande, que o vi poucas vezes sem ela.”
Manoel estava sozinho, se
vestia com um terno impecável, todo ereto, empertigado. Em uma foto já encardida,
desgastada pelo tempo e com alguns rasgos e amassados, mas ainda dava para ver vários
detalhes. Inclusive a enorme barba que parecia ter orgulho de possuir. Em
comparação ao bigode grisalho de meu avô e ao rosto raspado de meu pai, a barba
de Manoel se destacava entre a família. Existiam outras fotos entre as quais
ele estava ao lado de sua mulher, porém dessas imagens já não tenho lembranças.
Pelo que escutei dos acontecimentos
daquela noite. Ele estava sozinho. Não muito diferente das outras noites
normais em que tinha de percorrer o mesmo caminho, “Só eu e Deus! E melhor
sozinho que mal acompanhado.” dizia ele, em seus ditados, a todos que
perguntavam sobre suas andanças. A estrada era escura, mas iluminada pela lua. O
caminho era tranquilo. Quando Manoel passou por um barranco perto da mata e com
uma árvore inclinada, toda retorcida, quase caindo na estrada. Já começava a se
lamentar de ter saído tão tarde da festa, desacompanhado, e ainda mais naquela
noite maldita. Contou que chegou a arrepiar os cabelos da nuca, e aumentou o
trote do cavalo, talvez imaginando mil assombrações pelo caminho.
No ponto mais escuro da
estrada, onde as árvores escondiam a pouca luz da noite, seu cavalo começou a
se assustar. Querendo sair em disparada e Manoel, puxava as rédeas, irritado
com a montaria. Estava preocupado em ser jogado no chão e apresado para chegar
a seu destino. Como por milagre conseguiu movimentar o cavalo por mais alguns
metros, até que olhando para trás, pela primeira vez desde que saiu da festa.
Viu o enorme cão negro parado no meio da estrada a poucos metros de distância. Pronto
para dar um salto e se agarrar na traseira do cavalo. Ele descreveu o cachorro
como um monstro do tamanho de um bezerro e com olhos que meteriam medo até ao
diabo. De acordo com Manoel aquilo não poderia ser apenas um animal. O bicho
lhe lembrava a um homem. E quando colocou os olhos na criatura, disse que teve
a sensação de que a noite escureceu ainda mais. Pelo que imagino, meu tataravô
não pensou duas vezes, no mesmo instante ele esporeou o cavalo que começou a
correr levantando poeira pela estrada.
Perseguido por muito tempo,
pelo que conta, os latidos a distância pareciam gritos que se aproximavam
perigosamente de suas costas. Imagino que já pensava sentir o bafo quente da
criatura. Manoel não deu oportunidade para que seu cavalo empacasse, castigou o
animal com seu chicote. Quando já desistia de tudo e encomendava sua alma, conseguiu
se livrar da criatura quando passou perto de uma Igreja. Um assobio cortou o ar,
que esfriou na hora e o cavalo empacou novamente. Louco de desespero e quase
morrendo do coração, pensando nas possibilidades de sobrevivência que teria se descesse
do animal e saísse correndo por conta própria, Manoel respirou fundo e pulou do
cavalo. Quando pôs os pés no chão foi se acalmando aos poucos. Já não havia
mais os latidos assustadores. Respirou fundo mais algumas vezes e só depois de
algum tempo de calmaria teve a coragem de olhar para trás e perceber que mais
nada o perseguia.
Quanto mais a noite ia
passando mais eu ficava com vontade de escutar meu avô, e com a pontada do desejo
de ficar acordado até tarde se acabando e o sono ganhando. Ainda via o cachorro
na escuridão da noite a poucos metros da luz das lâmpadas, só que agora ele estava
deitado com as duas patas enormes juntas e a cabeça apoiada entre elas,
continuava a me olhar, agora com os olhos entre entreabertos. Talvez tenha
decidido que valesse a pena não me dizer nada do que tinha para ser dito. E a
voz de meu avô passava em um ritmo lento e confortante. No final eu dormia sentado
no chão de cimento e apoiado na parede da varanda. O cão negro no terreiro
sumia com meu sono, talvez fosse apenas um sonho. No dia seguinte, como se
fosse por mágica eu acordava em minha cama por de baixo dos cobertores e
babando no travesseiro.